13/05/2013
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03h00
A tortura de limpar um disco rígido
O DSM-V, edição mais recente da classificação de distúrbios
psiquiátricos, identifica novas categorias de transtornos mentais. Entre
eles chamam a atenção o hábito de comer em excesso, o vício em sexo e a
acumulação compulsiva.
A divisão entre a sanidade e a doença em cada um desses problemas é,
naturalmente, tênue. Ninguém precisa se culpar por ver um pouco de
pornografia ou comer cinco alfajores desde que isso não comprometa sua
vida social e produtiva. O mesmo pode ser dito para um pouco de tralha
que todo mundo tem guardada nos armários, gavetas, estantes e
"quartinhos da bagunça" nessa época de excessos de consumo. O problema
surge quando o acúmulo é tamanho a ponto de se tornar inconveniente,
gerando problemas de espaço, acesso, organização e, nos casos mais
graves, até de higiene.
Como boa parte dos comportamentos obsessivos, a acumulação compulsiva
começa quase imperceptível e vai progredindo aos poucos. O
"colecionador" parte de uma preocupação racional de guardar coisas que,
mesmo não usadas, podem vir a ser úteis até que, sem perceber, essa
preocupação foge do controle e absolutamente tudo passa a ser guardado.
Especialistas na área chamam essa acumulação compulsiva de Síndrome de
Diógenes, em referência ao filósofo grego que dormia em um barril e
recolhia objetos na rua. Não há consenso a respeito de causas ou
tratamento, que pode estar associado a problemas psiquiátricos como
depressão, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, deficit de
atenção e ansiedade generalizada.
No mundo digital esse problema ainda não foi identificado, embora seja
tão frequente quanto invisível. Em discos rígidos, pastas e documentos
não acumulam poeira nem se desfazem com o tempo. À medida que o
armazenamento digital se torna cada vez mais baratos, a tendência de
sobrecarregá-lo com inutilidades aumenta a ponto de se tornar um
problema.
Como os colecionadores do mundo físico, os digitais tendem a guardar uma
enorme quantidade de itens - fotos, músicas, e-books, documentos,
bookmarks, podcasts, aplicativos, e-mails, filmes e séries completas de
TV - que jamais utilizarão. Seus pen drives e discos rígidos ficam tão
lotados com cópias das cópias das cópias que se tornam lentos e difíceis
de usar.
Qualquer iniciativa para classificá-los ou jogar parte deles fora
provoca uma mistura de ansiedade com preguiça que paralisa, gerando
indecisão e procrastinação.
A ilusão de imaterialidade do mundo digital cria a impressão de espaços
gigantescos, em que nada precisa ser jogado fora. A facilidade com que
se pode acumular conteúdo, colocá-lo em pastas e se esquecer dele acaba
por criar um excesso de bagagem que torna discos rígidos e cérebros
muito mais lentos, já que a busca e identificação de cada material
guardado demanda um belo esforço cognitivo.
A comodidade cibernética trouxe com ela insegurança e indecisão
paralisantes, estimulando uma compulsão por classificar que só piora o
problema. As quantias impressionam: de 100.000 AC até 1980, foram
produzidos o equivalente a 10
18 bytes, o equivalente a quatro
bilhões de coleções da Enciclopédia Britannica. Só ontem se produziu
mais do que o triplo disso. Todo esse conteúdo é acumulado em servidores
cujos índices acabarão corrompidos, gerando uma massa de dados
ilegível, a ocupar máquinas sem qualquer uso pratico.
O cérebro humano foi projetado para esquecer. Lembrar-se de tudo é
doença, não sinal de genialidade. O que uma memória saudável guarda
costuma ser interpretado, e muitas vezes é bem melhor do que o fato em
si. Colecionar fracassos, guardar rancores e se apegar a coisas passadas
é recusar-se a viver novas experiências.
Uma ideia inusitada que corre pela Internet ultimamente é que documentos
digitais deveriam ter uma data de validade depois da qual seriam
automaticamente destruídos. Como diz qualquer consultora de moda: "se
não usou no ano passado, não vai mais usar." Isso retornaria as memórias
ao estado natural, em que o normal é esquecer e só se dispensa esforço
para lembrar o que realmente merece a atenção. Acredito que boa parte do
Facebook, YouTube e Pinterest acabariam esquecidos no limbo, sem
grandes perdas para a humanidade.
Provocações à parte, se continuarmos a acumular conteúdo nesse ritmo
podemos chegar a um ponto em que encontrar algo em um disco rígido
levará mais tempo do que buscá-lo online e baixá-lo novamente.
Todos conhecem alguém que acha pouco os gigabytes gratuitos oferecidos
pelo GMail são pouco, que guarda e-mails desde 1995, que sofre para
apagar até os documentos que não lembra de ter guardado, que tem pilhas
de ícones estranhos em sua área de trabalho, que não é capaz de se
lembrar em que redes sociais está e porquê, que tem pen drives
espalhados por gavetas e bolsos, sem saber se pode apagá-los, que tem
dezenas de milhares de fotos e músicas, boa parte delas em duplicata,
que armazena velhos episódios de seriados já vistos, e que tira finais
de semana para organizar seus discos rígidos.
A tensão para remover a pilha de detritos digitais é psicológica.
Vivemos em um universo de dados, dificilmente se encontrará um diamante
no meio do lixão. Mesmo que isso aconteça, o esforço dispendido não terá
valido a pena. É bom praticar o desapego de informação o quanto antes,
para não correr o risco de ver sua vida digital se tornar constantemente
e passivamente empilhada, byte por byte, até imobilizá-lo.
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da
ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com
internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de
publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes
no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro
"Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog
www.luli.com.br,
em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia.
Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da
Folha.