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segunda-feira, 9 de maio de 2011
O Descurvo
O Descurvo
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REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DO FASCISMO
"Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção"
Carl Schmitt na Teologia Política
"E sobre essa linha melódica de variação contínua constituída pelo afeto, Spinoza irá determinar dois pólos, alegria-tristeza, que serão para ele as paixões fundamentais: a tristeza será toda paixão, não importa qual, que envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a alegria será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de agir. Isso permitirá que Spinoza, por exemplo, realize uma abertura em direção a um problema moral e político muito fundamental, que será sua própria maneira de estabelecer o problema político: como acontece que as pessoas que têm o poder, não importa em que domínio, tenham necessidade de afetar-nos de uma maneira triste? As paixões tristes como necessárias: inspirar paixões tristes é necessário ao exercício do poder. E Spinoza diz, no “Tratado teológico-político”, que esse é o laço profundo entre o déspota e o sacerdote: eles têm necessidade da tristeza de seus súditos"
(Deleuze sobre Spinoza em aula de Janeiro de 1978 em Vincennes, lembrada por aqui, há um ano)
O debate sobre o Fascismo voltou à baila com força pelas redondezas blogosfera brasileira. Há poucos dias falávamos sobre isso aqui. E não é à toa. A alteração da disposição relativa de status na nossa na sociedade é um fenômeno não só acachapante como paradoxal: se ela produziu a melhora de vida de enormes contingentes humanos em um curto espaço de tempo, por outro lado, ela criou bolhas de ódio inacreditáveis. Vejam bem, se a democracia trouxe uma autonomia política jamais vivenciada para os trabalhadores e o fim da hiperinflação criou certa segurança social, as conquistas do desenvolvimento social nos anos Lula terminaram por colocar o Brasil tradicional em pane. Uma reação violenta se seguiu a isso, basta ver exemplos como a recente manifestação fascista na Avenida Paulista, em apoio a um obscuro deputado cuja plataforma demagógica se baseia justamente no ataque ao novo Brasil. O que eu gostaria aqui, é que refletíssemos juntos um pouco mais sobre o advento do Fascismo em nosso meio.
O fenômeno do fascismo hegemônico pode ser, a um primeiro olhar, causado por alguma crise político-econômica brusca em sociedades ocidentais industrializadas, o que leva a instituição de certo tipo de regime no Estado que é contrário aos princípios basilares do Iluminismo, no qual o poder e a vigilância são totais sob a regência de um Líder todo poderoso que nos guia na marcha incessante do (para e pelo) Progresso de acordo com certas premissas. No entanto, isso não explica a existência do Fascismo como fenômeno, afinal, ele independente de ser hegemônico para existir - via de regra, ele não costuma ser ou ter condições para tanto - e, também, ele aparece em cenários onde não há escassez generalizada como próprio caso brasileiro atesta - ou mesmo a Europa dos anos 90 . Temos, portanto, de pensar a questão do Fascismo por meio do conceito de relação.
Trata-se de um fenômeno radical que apresenta uma constante: existe uma perturbação socioeconômica que altera rapidamente o status de um grupo em relação ao outro - os alemães em relação aos ingleses, a velha classe média brasileira em relação aos trabalhadores, os franceses "legítimos" em relação aos franceses descendentes de magrebinos-, na qual a relação a mestre-escravo não é exaurida, mas vira de cabeça para baixo de repente e o movimento parece tender a pior, o que tem um impacto violento sobre o inconsciente das pessoas. Não é necessário cairmos para o mesmo patamar dos outros, os outros podem ascender perigosamente para perto de nós. Em todas as relações, há (1) um corte fundamental entre o eu e o outro, (2) uma relação hierárquica que se transforma - e expõe a verdade sobre os limites sociais - e, também, (3) um conceito de linearidade no que toca à economia e ao tempo - a ideia de uma História em linha reta.
Esse corte entre o eu e o outro não é senão a expressão dos processos de individualização e a atomização, inerência da máquina capitalista - uma ética deixa de ser possível porque eu não me reconheço na face do meu semelhante, o que, em situações limite, toma um caráter explosivo. O outro ponto, a hierarquização social, exprime algo bastante antigo e profundo nos grupos humanos e seu abalo, por sua vez, responde pela mais pura forma de horror social - quando as pessoas se deparam com a verdade horrenda por detrás dos limites deslocados.
Pensemos no juízo da advogada em relação ao pedreiro em um shopping, "você não devia estar aqui porque não tem dinheiro para comprar nada" - mas, e se ele tivesse dinheiro? -, ou mesmo o francês "legítimo" em relação ao imigrante magrebino, "você não tem esses direitos porque é estrangeiro, resigne-se" - e se ele não for um imigrante? -; em ambos os casos, a causa de tais vedações - seja a reprovação moral ou a proibição jurídica - se aplicavam sobre seu status, embora fossem legitimadas por juízos racionais que escondem desejos ocultos - eu quero que ele não tenha, eu quero que ele não seja -, a causa verdadeira da contenda; o medo profundo em questão é o de pedreiros não serem piores do que advogados ou magrebinos étnicos não serem piores, por sua condição de ser, do que franceses (ou pior, poderem ser mesmo "franceses"), a possibilidade de um futuro no qual a disposição do status social mude para pior.
O terror que percorre a alma vem à tona quando se constata que não há mais o álibi, quando o pedreiro tem o dinheiro para estar ali e o magrebino é mesmo cidadão francês; aquele medo que alimentava a reprovação e a negação de direitos torna-se realidade, o que faz as regras, aquelas amigáveis ficções sociais ou jurídicas, ruírem, elas perderam sua razão de ser. A relação hierárquica está ali, mas ela mudou de disposição contra o Eu - e do nós, o Eu expandido - e a favor dos Outros. Não importa se Eu (ou nós) caímos ou se eles ascenderam, mas o fato é que o vento mudou e não foi a nosso favor. Os dois exemplos que eu utilizei retratam não casos específicos, mas fenômenos sociais relevantes no Brasil - a ascensão econômica da classe trabalhadora - e na França - a ascensão social dos magrebinos, absorvidos pela sociedade francesa, o que exige que, uma vez incorporados, tenham seus diretos reconhecidos pelo Estado francês -, o que produz reações radicais por meio de fenômenos de segregativos com articulações sociais e políticas.
E medo é uma palavra importante aqui: como dizia o bom Spinoza, trata-se de uma tristeza incerta - eu não sei se vai acontecer, mas pode acontecer e minha capacidade de agir diminui - e o mesmo vale para a esperança - uma alegria sob as mesmas condições -; ambos dependem de um certo conceito de tempo, trata-se de uma questão cronológica altamente enraizada em nossa cultura ocidental. A saber, a terceira condição que eu elenquei para o surgimento de um fenômeno fascista. o Tempo como seta, como diria um tal de Walter Benjamin.
O Fascismo não é o único fenômeno que irá decorrer disso, naturalmente. Mas ele depende disso, o tempo precisa ser uma linha reta para, diante dos fenômenos anteriores surgir uma perspectiva na qual é preciso reagir contra o futuro (enquanto entidade) - no qual os pedreiros mais e mais estarão infestando todos os ambientes ou magrebinos idem - e voltar a um passado (também entificado) no qual as coisas estavam no seu devido lugar, para, de acordo como as coisas eram, progredir rumo ao futuro certo. Não é uma marcha rumo à utopia, mas a garantia da tradição, da pureza e da segurança numa marcha que também mira o horizonte. Eu fico triste e alegre pelo que nem aconteceu porque dou um status real ao tempo.
Dentro de uma lógica de tempo e sociedade na qual se marcha para - e pelo - progresso, ser ultrapassado por quem estava atrás - ou abaixo, conforme se veja a situação - é motivo para um ódio profundo, trata-se do deflagrador de uma neurose aguda. E essa perspectiva que põe necessariamente o tempo como uma linha reta é um dos traços do argumento central do pensamento ocidental, a saber, a relação promíscua entre Teologia e Filosofia Política agenciada por Platão - isto é, o condicionamento da criação dos conceitos sobre as coisas da pólis a um divino transcendente e não alcançável pelos incautos.
A Salvação, a grande cura para todos os males na forma de Um totalizante, torna-se a meta da política, mas é uma meta tão inalcançável quanto o horizonte - o que, por conseguinte, acaba como qualquer chance de liberdade; nunca alcançamos o que procuramos e nossa insignificância nos frustra profundamente, só nos resta depositar a nossa vida nas mãos dos iluminados capazes de chegarem ao horizonte. Estamos abandonados, ainda mais quando eles surgem e tomam o nosso lugar.
No século 17º, entre o polimento de uma lente e outra, Baruch de Spinoza ousou desafiar esse postulado. Não há tempo em linha reta, afinal, o tempo nada mais é que um modo de pensar que serve à nossa localização na existência. Não existe transcendência, pois o próprio Deus é causa e efeito de si mesmo, portanto, Ele não passa da própria Natureza. O seu Tratado Teológico-Político é muito mais que uma obra sobre tolerância religiosa; ele é uma contestação radical da essência da própria dominação tal como a conhecemos: não existe e não pode existir realmente Salvação, a incalcançabilidade do horizonte é sua própria condição de existência como tal, e, por conseguinte, todo profeta é só mais um charlatão que transforma a miséria humana - a própria maravilha do mundo - em defeito ou imperfeição para vender seu bálsamo falso. Uma redenção totalizante é impossível, logo ela serve - ou conduz - unicamente à dominação. A luta verdadeira que pode ser travada é por uma Libertação - de nós mesmos, dos nossos medos, da culpa, da honra, da glória - que nos reconcilie com o Mundo.
Em sentido inverso, o pensamento nazista no século 20º vem à atar de maneira mais radical ainda a relação entre Teologia e Política. O pensamento de um Carl Schmitt não é racionalista, mas nem por isso escapa à tradição ocidental. O soberano é o messias, isto é, a materialização, em pessoa, da totalidade e o condutor inquestionável da marcha incessante para a Salvação. Trata-se de uma forma de idealismo tremenda. O discurso tirânico, assentado na polaridade medo-esperança, reaparece com força - e tampouco estamos falando do soberano hobbesiano, pois ele mesmo o era por conta de um contrato que estaria suspenso caso ameaçasse a vida dos seus súditos: aqui não há contrato, mas a suspensão dele por um ato unilateral da vontade do Um, assentado na necessidade premente da Salvação. Os mesmos motivos que fizeram o Leviatã ser proscrito, não se enganem, são os mesmos que fizeram Schmitt ser aclamado pelo Poder em seu tempo.
O discurso complexo do nazismo, por exemplo, é expressão do fenômeno fascista na Alemanha do entreguerras visando a transforma-lo em força hegemônica. Como nos lembra Leandro Calbente em um recente (e belo) artigo - retomando Benjamin e Esposito -, parte relevante do discurso nazista era estético; a ruga, o ferrugem no metal, a folha que cai, o velho prédio, toda as diferenças que constituem a realidade são reduzidas à imperfeição. Uma marcha nazista não apaixona os observadores por desperta-lhes alegria, mas por entristecê-los; o mundo é mau porque é feio - e a feíura resulta da existência de tanta "imperfeição" e de tantas assimetrias (isto é pela existência de tantas diferenças, em outras palavras, pelo fato do mundo sê-lo tal e qual é), é isso que as manifestações nazistas, com seu ritmo bem marcado, suas bandeiras e sua música queriam dizer e é dessa maneira que afetavam os mais incautos. Se o velho Spinoza pretendia construir uma Ética na qual, cá no nosso mundinho, se poderia construir uma sistemática de convivência por meio da compreensão e interação entre as diferenças, os ideólogos do Nazismo eram novos profetas que vendiam a eliminação do Outro (reduzido a Inimigo) como o fim do programa e condição necessária para o Progresso. Se Spinoza quer construir um modo do Eu interagir com o Mundo, os Nazistas querem resolver esse problema cindindo-os de forma perpétua.
A estetização da política, como bem lembra o Leandro, não se esgota no Fascismo - e o Fascismo não se esgota à Europa do Entreguerras, acrescentamos -, o que nos põe frente a frente com sua problemática no aqui-agora; e não será o desenvolvimento econômico e social que o jogará na lata do lixo da história, afinal, aí estaríamos nos valendo do mesmíssimo raciocínio sobre a qual o próprio Fascismo, por vias outras, se assenta - e se desenvolve. São intervenções artísticas - políticas, inclusive - no aqui-agora que afetem a todos em volta, aumentando nossa capacidade de agir, mostrando que a maravilha do mundo é sua dita imperfeição - o real contraposto ao ideal angustiante e angustiador -, enfim, uma política de alegria e não de esperança, pois a esperança demanda a crença na existência do Futuro enquanto ente real e ele só consegue sê-lo na retórica dos profetas (onde serve para, apenas e tão somente, nos sujeitar, fazendo-nos progredir para onde eles querem que nos movemos). Não precisamos provar algo como "o Outro não é imperfeito, mas sim diferente", basta mostrarmos que a imperfeição não é outra coisa senão a própria beleza.
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